sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

UM ESPETÁCULO DE RARA BELEZA E ENTUSIASMO NA TV ABERTA

Meu mestre Julio Medaglia teima em defender música de qualidade... e não fica só na palavra. Em 2005 o maestro inventou e desde então apresenta pela TV Cultura de São Paulo o Prelúdio, programa de calouros que tem uma grande originalidade: os que tentam a sorte para a carreira artística nesse programa são músicos de formação erudita e devem se apresentar executando peças do repertório tradicional e contemporâneo dos autores clássicos.

No último domingo, dia 6, o Prelúdio chegou à grande final deste ano, com a apresentação de quatro finalistas: Ricardo Barbosa, oboísta; Mizael Júnior, violinista; Jonathan Garcia e Maikel Morelli, saxofonistas, todos com idade em torno de 20, 20 e poucos anos. Eles foram chamados ao palco pela apresentadora Estela Ribeiro e receberam aplausos entusiasmados da platéia que lotava a esplêndida Sala São Paulo.

Além do nível extraordinário dos competidores, outra característica do evento que me chamou a atenção foi a grande presença de jovens e de pessoas que normalmente não iriam a um espetáculo desse gênero. O ingresso era gratuito, e houve até quem ficasse de fora.

Ao ver a multidão muito animada durante a entrada dos músicos e completamente seduzida durante todas as apresentações – e ao ouvir os aplausos muitíssimo calorosos ao fim de cada uma delas –, me lembrei de algo que me intriga há muito tempo. Em dezembro de 2006, durante viagem de trabalho a Bruxelas, tive a oportunidade de assistir a um concerto da excelente cantora americana Madeleine Peyroux numa belíssima sala de espetáculos. Paguei então cerca de 30 reais para vê-la, e o lugar era muito bom. No ano seguinte, a celebrada Ms. Peyroux se apresentou aqui em São Paulo, e o ingresso mais barato custava em torno de 150 reais. Alguém pode explicar por que acontece uma diferença tão abissal como esta? Ao que consta, em média nossos amigos belgas desfrutam de uma renda per capita muito mais alta que a da imensa maioria de nós brasileiros.

É claro que não dá pra fazer apenas espetáculos gratuitos, mas eles são uma forma eficiente de atrair públicos novos, especialmente os jovens. Em entrevista gravada para o Roda Viva da TV Cultura em setembro de 2005, perguntei ao maestro Zubin Mehta se ele continuava a fazer espetáculos gratuitos e ao ar livre, lembrando que ele tinha batido recorde de público no Ibirapuera, em São Paulo, em 1987, com a Filarmônica de Nova York. O maestro respondeu:

“Faço isso constantemente, principalmente nos meses de verão. Nós lembramos do Ibirapuera com muito amor, porque lembro que, uma vez, fiz uns três concertos lá. Uma vez estava chovendo, e o público foi de oitenta mil pessoas, com guarda-chuvas. Com a Filarmônica de Nova York e a de Israel, fizemos um concerto na praia de Botafogo, no Rio. Tocamos na praia, metade do público estava na areia, metade estava na água. Foi estupendo. O que é maravilhoso é que esses concertos são grátis. Precisamos construir não só nosso futuro público, como a nossa futura orquestra que vem da favela, e o futuro público precisa vir da praia também. É muito importante. No Central Park nós tocávamos todo ano, quando eu estava com a Filarmônica de Nova York. Às vezes, quando havia fogos de artifício, o público era de trezentas mil pessoas. É bom usar fogos de artifício, se isso atrair o público. Tocamos a 1812, de Tchaikovsky, e eles adoraram. Fizemos um concerto gratuito em Viena, em frente ao Schönbrunn, um lindo palácio nas imediações de Viena, noventa mil pessoas compareceram. A Filarmônica de Viena também está começando a pensar assim e não apenas em fazer concertos no Musikverein (uma das mais famosas salas de concerto do mundo, sede da Filarmônica de Viena). Em Munique também fiz um concerto gratuito. Fazemos isso o tempo todo, e é muito saudável”.

O programa apresentado por Julio Medaglia e Estela Ribeiro não só está igualmente cumprindo essa função como ainda dá oportunidade a jovens artistas de se apresentar em público, em teatros do mais alto gabarito, com a ótima orquestra comandada pelo maestro Medaglia, e ganhar experiência para se firmar na difícil carreira de músico erudito num concerto pra valer – frente a uma platéia cada vez mais envolvida com o espetáculo.

Uma parte (infelizmente) reduzida do público telespectador teve o bom gosto de acompanhar a empolgante final do Prelúdio em casa pela TV Cultura. O resto ficou vendo a bobajada habitual que a TV aberta oferece. Como diria Ruy Castro, pior para eles.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

50 ANOS SEM VILLA-LOBOS E UMA BELA PEÇA ESQUECIDA

Há muitos anos, ainda estudante secundário no interior, ao acordar bem cedo para ir a aulas de educação física, eu aproveitava para ouvir um tema que era o prefixo musical da Rádio Eldorado de São Paulo. Pontualmente às 6 horas da manhã, ia ao ar uma gravação com aquela melodia meio distante, evocativa, etérea e de poderoso fascínio... Anos mais tarde, já vivendo em São Paulo, liguei para a Rádio Eldorado e então soube que aquele tema era de Villa-Lobos e se chamava Saudades das selvas brasileiras. Composto e publicado em Paris em 1927, era executado pelo pianista Homero Magalhães.

Por causa de sua identificação com a Rádio Eldorado – uma das emissoras que mais influenciaram o gosto musical em minha família –, Saudades das selvas brasileiras tornou-se uma verdadeira obsessão para mim. Descobri que ela foi tocada em público pela primeira vez em 14/03/1930, em Paris, no Festival de Música Moderna, na Sala Chopin, pela pianista Janine Cools.

Dizem que Saudades das selvas brasileiras foi uma resposta de Villa-Lobos a Saudades do Brasil (1920), do compositor francês Darius Milhaud, que viveu de 1914 a 1918 no Brasil, como secretário particular do poeta e diplomata Paul Claudel, então embaixador da França no Rio de Janeiro.

Seja como for, Saudades das selvas brasileiras foi minha introdução ao vasto universo musical de Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 5 de março de 1887 – Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1959), considerado o criador de uma linguagem “brasileira” na música erudita, com a incorporação de elementos folclóricos, populares e indígenas, resultado de suas viagens e pesquisas pelo Brasil.

Em 1964 fez grande sucesso o Samba em prelúdio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, sobre o qual existe uma história bem engraçada no endereço

http://bossa-mag.spaceblog.com.br/204003/Samba-em-Preludio-A-Musica-que-Chopin-Esqueceu-de-Fazer/

No entanto, quando surgiu nos cinemas, no mesmo ano, Deus e o diabo na terra do sol, um trecho da música do filme me chamou a atenção: era igualzinho à melodia de Samba em prelúdio. Um pouco de pesquisa revelou que o tal trecho era o Prelúdio de uma das Bachianas de Villa-Lobos, a de Nº 4. Por que será que Baden, Vinicius e a então mulher do poeta, a pianista Lúcia Proença, não teriam percebido que o “plágio” não era de Chopin, e sim de Villa-Lobos? Ou essa história não tem lá tanto fundamento?

O que importa nisso tudo é que me dei conta de que o compositor erudito brasileiro mais conhecido influenciava fortemente nossa música popular. Mais ou menos na mesma época Antonio Carlos Jobim afirmava com todas as letras – e muito mais autoridade – que para ele o Mestre era Villa-Lobos.

Mas a realidade teima em dar voltas. Ao ler biografias e estudos sobre Villa-Lobos, verifiquei que o contrário tinha acontecido antes. O compositor recebeu instrução musical do pai, Raul Villa-Lobos, músico amador, que morreu quando Villa-Lobos tinha 12 anos. Para ganhar a vida, Heitor começou a tocar violoncelo em locais populares, como teatros e cafés, e em salões de baile. Foi então que Villa-Lobos descobriu os chorões – músicos que compunham e executavam chorinhos –, passou a conviver e a tocar com eles e incorporou muito do que ouviu e aprendeu de música popular. Foi nessa época que adotou também o violão como um de seus instrumentos. Sorte nossa... A produção para violão de Villa-Lobos é das melhores que existem.

Com o conhecimento formal que tinha de música européia, a influência dos chorões e do que pesquisou em várias regiões do Brasil, Villa-Lobos criou seu próprio estilo e não se “filiou” a nenhuma tendência “oficial”. Mas demonstrou simpatia pelo movimento artístico liderado por Oswald de Andrade e Mário de Andrade e participou da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922.

Entre 1923 e 1930 Villa-Lobos viveu em Paris. De volta ao Brasil, batalhou pela instituição do canto orfeônico e do ensino da música nas escolas oficiais do país. Continuou a compor até o fim da vida e até se arriscou no cinema. Segundo Irineu Franco Perpétuo, no endereço

http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u104.shtml

“Villa-Lobos escreveu duas trilhas sonoras para o cinema. A primeira, para o filme O descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, acabou resultando na composição de quatro suítes orquestrais, que foram gravadas pelo maestro Roberto Duarte. A segunda foi a trilha sonora do filme A flor que não morreu (Green mansions, 1959), da MGM, de Mel Ferrer, protagonizado por Audrey Hepburn. O compositor Bronislau Kaper, que mexeu bastante na partitura, dividiu os créditos da música que foi às telas. Descontente, Villa-Lobos acabou compondo A floresta do Amazonas, para soprano, coro masculino e orquestra, para restaurar suas intenções originais”.

A gravação de A floresta do Amazonas, a última feita por Villa-Lobos – à frente da Sinfônica do Ar em Nova York (1959), com a soprano Bidu Sayão – ficou décadas fora de catálogo até ressurgir em CD no Brasil em 1996.

Saudades das selvas brasileiras não teve a mesma sorte. Poucos artistas a gravaram, entre eles os brasileiros Cristina Ortiz e Roberto Szidon. As gravações de ambos são bem difíceis de encontrar. A de Roberto Szidon, a mais completa e, para mim, a mais bonita, é do LP Música para piano de Villa-Lobos, feito para a Deutsche Grammophon em 1976. Esse disco foi editado no Brasil em tiragem limitada e logo se esgotou. Nunca apareceu em CD por aqui, apesar de sua alta qualidade artística e de conter várias das peças mais importantes de Villa-Lobos para o instrumento. Por uma dessas estratégias de mercado que ninguém consegue explicar direito, a Deutsche Grammophon reuniu as gravações de Música para piano de Villa-Lobos com outras de Szidon para a gravadora e as publicou no álbum com dois CDs Piano music of the Americas, à venda em sites americanos, europeus e japoneses – e nunca editado no Brasil, até agora. Pode ser baixado em

http://classic4everyone.blogspot.com/2009/08/piano-music-of-americas.html

por quem quiser conhecer o excelente Szidon e suas belas interpretações de Gershwin, Charles Ives e, claro, Villa-Lobos. Saudades das selvas brasileiras está no CD 2.

Recomendo:

http://vidadepoisdos50.blogspot.com/

O autor é meu amigo Marcos de Guide, jornalista e músico da maior competência.