sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

UM ESPETÁCULO DE RARA BELEZA E ENTUSIASMO NA TV ABERTA

Meu mestre Julio Medaglia teima em defender música de qualidade... e não fica só na palavra. Em 2005 o maestro inventou e desde então apresenta pela TV Cultura de São Paulo o Prelúdio, programa de calouros que tem uma grande originalidade: os que tentam a sorte para a carreira artística nesse programa são músicos de formação erudita e devem se apresentar executando peças do repertório tradicional e contemporâneo dos autores clássicos.

No último domingo, dia 6, o Prelúdio chegou à grande final deste ano, com a apresentação de quatro finalistas: Ricardo Barbosa, oboísta; Mizael Júnior, violinista; Jonathan Garcia e Maikel Morelli, saxofonistas, todos com idade em torno de 20, 20 e poucos anos. Eles foram chamados ao palco pela apresentadora Estela Ribeiro e receberam aplausos entusiasmados da platéia que lotava a esplêndida Sala São Paulo.

Além do nível extraordinário dos competidores, outra característica do evento que me chamou a atenção foi a grande presença de jovens e de pessoas que normalmente não iriam a um espetáculo desse gênero. O ingresso era gratuito, e houve até quem ficasse de fora.

Ao ver a multidão muito animada durante a entrada dos músicos e completamente seduzida durante todas as apresentações – e ao ouvir os aplausos muitíssimo calorosos ao fim de cada uma delas –, me lembrei de algo que me intriga há muito tempo. Em dezembro de 2006, durante viagem de trabalho a Bruxelas, tive a oportunidade de assistir a um concerto da excelente cantora americana Madeleine Peyroux numa belíssima sala de espetáculos. Paguei então cerca de 30 reais para vê-la, e o lugar era muito bom. No ano seguinte, a celebrada Ms. Peyroux se apresentou aqui em São Paulo, e o ingresso mais barato custava em torno de 150 reais. Alguém pode explicar por que acontece uma diferença tão abissal como esta? Ao que consta, em média nossos amigos belgas desfrutam de uma renda per capita muito mais alta que a da imensa maioria de nós brasileiros.

É claro que não dá pra fazer apenas espetáculos gratuitos, mas eles são uma forma eficiente de atrair públicos novos, especialmente os jovens. Em entrevista gravada para o Roda Viva da TV Cultura em setembro de 2005, perguntei ao maestro Zubin Mehta se ele continuava a fazer espetáculos gratuitos e ao ar livre, lembrando que ele tinha batido recorde de público no Ibirapuera, em São Paulo, em 1987, com a Filarmônica de Nova York. O maestro respondeu:

“Faço isso constantemente, principalmente nos meses de verão. Nós lembramos do Ibirapuera com muito amor, porque lembro que, uma vez, fiz uns três concertos lá. Uma vez estava chovendo, e o público foi de oitenta mil pessoas, com guarda-chuvas. Com a Filarmônica de Nova York e a de Israel, fizemos um concerto na praia de Botafogo, no Rio. Tocamos na praia, metade do público estava na areia, metade estava na água. Foi estupendo. O que é maravilhoso é que esses concertos são grátis. Precisamos construir não só nosso futuro público, como a nossa futura orquestra que vem da favela, e o futuro público precisa vir da praia também. É muito importante. No Central Park nós tocávamos todo ano, quando eu estava com a Filarmônica de Nova York. Às vezes, quando havia fogos de artifício, o público era de trezentas mil pessoas. É bom usar fogos de artifício, se isso atrair o público. Tocamos a 1812, de Tchaikovsky, e eles adoraram. Fizemos um concerto gratuito em Viena, em frente ao Schönbrunn, um lindo palácio nas imediações de Viena, noventa mil pessoas compareceram. A Filarmônica de Viena também está começando a pensar assim e não apenas em fazer concertos no Musikverein (uma das mais famosas salas de concerto do mundo, sede da Filarmônica de Viena). Em Munique também fiz um concerto gratuito. Fazemos isso o tempo todo, e é muito saudável”.

O programa apresentado por Julio Medaglia e Estela Ribeiro não só está igualmente cumprindo essa função como ainda dá oportunidade a jovens artistas de se apresentar em público, em teatros do mais alto gabarito, com a ótima orquestra comandada pelo maestro Medaglia, e ganhar experiência para se firmar na difícil carreira de músico erudito num concerto pra valer – frente a uma platéia cada vez mais envolvida com o espetáculo.

Uma parte (infelizmente) reduzida do público telespectador teve o bom gosto de acompanhar a empolgante final do Prelúdio em casa pela TV Cultura. O resto ficou vendo a bobajada habitual que a TV aberta oferece. Como diria Ruy Castro, pior para eles.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

50 ANOS SEM VILLA-LOBOS E UMA BELA PEÇA ESQUECIDA

Há muitos anos, ainda estudante secundário no interior, ao acordar bem cedo para ir a aulas de educação física, eu aproveitava para ouvir um tema que era o prefixo musical da Rádio Eldorado de São Paulo. Pontualmente às 6 horas da manhã, ia ao ar uma gravação com aquela melodia meio distante, evocativa, etérea e de poderoso fascínio... Anos mais tarde, já vivendo em São Paulo, liguei para a Rádio Eldorado e então soube que aquele tema era de Villa-Lobos e se chamava Saudades das selvas brasileiras. Composto e publicado em Paris em 1927, era executado pelo pianista Homero Magalhães.

Por causa de sua identificação com a Rádio Eldorado – uma das emissoras que mais influenciaram o gosto musical em minha família –, Saudades das selvas brasileiras tornou-se uma verdadeira obsessão para mim. Descobri que ela foi tocada em público pela primeira vez em 14/03/1930, em Paris, no Festival de Música Moderna, na Sala Chopin, pela pianista Janine Cools.

Dizem que Saudades das selvas brasileiras foi uma resposta de Villa-Lobos a Saudades do Brasil (1920), do compositor francês Darius Milhaud, que viveu de 1914 a 1918 no Brasil, como secretário particular do poeta e diplomata Paul Claudel, então embaixador da França no Rio de Janeiro.

Seja como for, Saudades das selvas brasileiras foi minha introdução ao vasto universo musical de Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 5 de março de 1887 – Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1959), considerado o criador de uma linguagem “brasileira” na música erudita, com a incorporação de elementos folclóricos, populares e indígenas, resultado de suas viagens e pesquisas pelo Brasil.

Em 1964 fez grande sucesso o Samba em prelúdio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, sobre o qual existe uma história bem engraçada no endereço

http://bossa-mag.spaceblog.com.br/204003/Samba-em-Preludio-A-Musica-que-Chopin-Esqueceu-de-Fazer/

No entanto, quando surgiu nos cinemas, no mesmo ano, Deus e o diabo na terra do sol, um trecho da música do filme me chamou a atenção: era igualzinho à melodia de Samba em prelúdio. Um pouco de pesquisa revelou que o tal trecho era o Prelúdio de uma das Bachianas de Villa-Lobos, a de Nº 4. Por que será que Baden, Vinicius e a então mulher do poeta, a pianista Lúcia Proença, não teriam percebido que o “plágio” não era de Chopin, e sim de Villa-Lobos? Ou essa história não tem lá tanto fundamento?

O que importa nisso tudo é que me dei conta de que o compositor erudito brasileiro mais conhecido influenciava fortemente nossa música popular. Mais ou menos na mesma época Antonio Carlos Jobim afirmava com todas as letras – e muito mais autoridade – que para ele o Mestre era Villa-Lobos.

Mas a realidade teima em dar voltas. Ao ler biografias e estudos sobre Villa-Lobos, verifiquei que o contrário tinha acontecido antes. O compositor recebeu instrução musical do pai, Raul Villa-Lobos, músico amador, que morreu quando Villa-Lobos tinha 12 anos. Para ganhar a vida, Heitor começou a tocar violoncelo em locais populares, como teatros e cafés, e em salões de baile. Foi então que Villa-Lobos descobriu os chorões – músicos que compunham e executavam chorinhos –, passou a conviver e a tocar com eles e incorporou muito do que ouviu e aprendeu de música popular. Foi nessa época que adotou também o violão como um de seus instrumentos. Sorte nossa... A produção para violão de Villa-Lobos é das melhores que existem.

Com o conhecimento formal que tinha de música européia, a influência dos chorões e do que pesquisou em várias regiões do Brasil, Villa-Lobos criou seu próprio estilo e não se “filiou” a nenhuma tendência “oficial”. Mas demonstrou simpatia pelo movimento artístico liderado por Oswald de Andrade e Mário de Andrade e participou da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922.

Entre 1923 e 1930 Villa-Lobos viveu em Paris. De volta ao Brasil, batalhou pela instituição do canto orfeônico e do ensino da música nas escolas oficiais do país. Continuou a compor até o fim da vida e até se arriscou no cinema. Segundo Irineu Franco Perpétuo, no endereço

http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u104.shtml

“Villa-Lobos escreveu duas trilhas sonoras para o cinema. A primeira, para o filme O descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, acabou resultando na composição de quatro suítes orquestrais, que foram gravadas pelo maestro Roberto Duarte. A segunda foi a trilha sonora do filme A flor que não morreu (Green mansions, 1959), da MGM, de Mel Ferrer, protagonizado por Audrey Hepburn. O compositor Bronislau Kaper, que mexeu bastante na partitura, dividiu os créditos da música que foi às telas. Descontente, Villa-Lobos acabou compondo A floresta do Amazonas, para soprano, coro masculino e orquestra, para restaurar suas intenções originais”.

A gravação de A floresta do Amazonas, a última feita por Villa-Lobos – à frente da Sinfônica do Ar em Nova York (1959), com a soprano Bidu Sayão – ficou décadas fora de catálogo até ressurgir em CD no Brasil em 1996.

Saudades das selvas brasileiras não teve a mesma sorte. Poucos artistas a gravaram, entre eles os brasileiros Cristina Ortiz e Roberto Szidon. As gravações de ambos são bem difíceis de encontrar. A de Roberto Szidon, a mais completa e, para mim, a mais bonita, é do LP Música para piano de Villa-Lobos, feito para a Deutsche Grammophon em 1976. Esse disco foi editado no Brasil em tiragem limitada e logo se esgotou. Nunca apareceu em CD por aqui, apesar de sua alta qualidade artística e de conter várias das peças mais importantes de Villa-Lobos para o instrumento. Por uma dessas estratégias de mercado que ninguém consegue explicar direito, a Deutsche Grammophon reuniu as gravações de Música para piano de Villa-Lobos com outras de Szidon para a gravadora e as publicou no álbum com dois CDs Piano music of the Americas, à venda em sites americanos, europeus e japoneses – e nunca editado no Brasil, até agora. Pode ser baixado em

http://classic4everyone.blogspot.com/2009/08/piano-music-of-americas.html

por quem quiser conhecer o excelente Szidon e suas belas interpretações de Gershwin, Charles Ives e, claro, Villa-Lobos. Saudades das selvas brasileiras está no CD 2.

Recomendo:

http://vidadepoisdos50.blogspot.com/

O autor é meu amigo Marcos de Guide, jornalista e músico da maior competência.

domingo, 29 de novembro de 2009

100 ANOS DE JOHNNY MERCER E 110 ANOS DE HOAGY CARMICHAEL

Dois grandes compositores americanos têm muito em comum, além do fato de terem sido parceiros em 36 canções. Eles são Johnny Mercer e Hoagy Carmichael. Para quem quer um cartão de visita, Mercer é o autor, por exemplo, da letra da canção Moon River. E Carmichael é o autor da melodia de Stardust.

Eles tinham em comum também o mês em que nasceram. Johnny Mercer, em 18 de novembro de 1909. Hoagy Carmichael, 22 de novembro de 1899. Portanto, neste mês se comemoraram os 100 anos de Mercer e os 110 de Carmichael.

Johnny Mercer, autor de mais de 1000 canções, recebeu dezoito indicações para o Oscar e levou 4 prêmios Oscar de melhor canção. Ele nasceu em Savannah, Estado da Geórgia.

É mais fácil dizer o que Johnny Mercer deixou de fazer do que enumerar tudo o que ele fez. Só para ter uma idéia, além de cantor e compositor ele também foi ator, apresentador de rádio e TV, roteirista de rádio, cinema e TV e fundador de uma das maiores gravadoras do mundo, a Capitol americana. Henry Mancini, seu parceiro de tantos sucessos e dois prêmios Oscar de melhor canção, costumava dizer que Johnny Mercer era também um grande pintor e se orgulhava de possuir vários quadros do amigo.

Depois de uma experiência como ator em sua cidade natal, Savannah, Johnny Mercer foi para Nova York em fins dos anos 20 e começou a trabalhar numa editora de música. Em 1930 uma canção dele, intitulada Out of breath and scared to death of you, com música de Everett Miller, foi publicada, gravada e usada num espetáculo da Broadway, Garrick Gaieties, de 1930. Daí em diante ele nunca mais parou de compor, sozinho ou em parceria com uma verdadeira lista telefônica de grandes compositores (o site de Mercer situa o número de parceiros dele em torno de 100).

Depois de trabalhar com o maestro Paul Whiteman, Johnny Mercer acabou indo para Hollywood e, de 1935 até os anos 70, compôs diretamente para cerca de 60 filmes. E é quase impossível contar em quantos outros filmes canções dele foram usadas, antes e depois de sua morte, em 25 de junho de 1976. Um dos primeiros grandes sucessos de Mercer é Jeepers’ creepers, parceria com Harry Warren, do filme Going places ou Coragem a muque, de 1939. Jeeper’s creepers reapareceria no perturbador The day of the locust ou O dia do gafanhoto, de 1975. Ficou mundialmente conhecida com a antológica gravação de Louis Armstrong e sua orquestra, de 18 de janeiro de 1939, e continua sendo regravada até hoje, como muitas das canções de Johnny Mercer. Aliás, segundo levantamentos de entidades arrecadadoras de direitos autorais, não passa um dia sem que, em algum lugar do planeta, melodias e letras de Johnny Mercer sejam reproduzidas, em rádio, TV, cinema, Internet etc.

Já na letra de Jeeper's creepers Johnny Mercer provou que sabia utilizar muito bem palavras estranhas e combinar com perfeição onomatopéias. E em toda a sua carreira ele mostraria competência e elegância em praticamente todos os gêneros, fazendo rimas inesperadas e transformando até banalidade em poesia.

Uma das letras mais requintadas e menos conhecidas de Mercer é a que ele fez para Out of this world, em parceria com Harold Arlen, para um filme medíocre que tinha o mesmo nome, de 1945. A canção, porém, é excepcional, principalmente pelos versos "No armored knight was more enchanted by a Lorelei than I" (“Nenhum cavaleiro em armadura ficou mais encantado por uma Lorelei do que eu”). Lorelei é aquela famosa sereia do rio Reno que, na mitologia germânica, atraía marinheiros para a morte no fundo do rio com o seu canto irresistível. Esquecida por cerca de 20 anos, Out of this world ressuscitou numa esplêndida gravação de Tony Bennett, no LP For once in my life, lançado em 6 de dezembro de 1967, com arranjo e regência de Marion Evans.

O cinema não se cansa de aproveitar criações de Johnny Mercer, mesmo que não tenham sido feitas diretamente para algum filme. Uma das mais famosas, Dream, tem letra e melodia dele. Foi composta em 1944 para o programa de rádio The Chesterfield Show e utilizada, entre outros, no filme Carnal knowledge ou Ânsia de amar, de 1971, na voz de Frank Sinatra, em gravação de 1960, com arranjo e regência de Nelson Riddle. Também acompanhada por Riddle, Ella Fitzgerald incluiu Dream no álbum The Johnny Mercer songbook, gravado em 1964.

Outro enorme sucesso de Johnny Mercer é On the Atchison, Topeka and the Santa Fe. Com música de Harry Warren, esta canção foi composta para o musical da Metro com Judy Garland The Harvey girls ou As garçonetes de Harvey, lançado em 1946, e ganhou o Oscar daquele ano.

A marca registrada de Johnny Mercer era habilidade para lidar com qualquer situação e qualquer tipo de palavra. Por exemplo, Too marvelous for words foi escrita em parceria com Richard Whiting para o filme Ready, willing and able ou Amor de opereta, de 1937, com Ruby Keeler e Lee Dixon dançando ao som dessa canção sobre uma gigantesca máquina de escrever. Uma das peculiaridades dessa letra é o uso da palavra dicionário: "You're much, too much, and all too very very / To ever be in Webster's Dictionary". A dupla Sinatra-Riddle, com a classe habitual, revisitou essa canção nos estúdios da Capitol em 16 de janeiro de 1956. E em fevereiro de 1982 outra dupla de respeito, Jackie Cain & Roy Kral, trouxe de volta Too marvelous for words, no álbum High standards.

Amigos e colegas de Johnny Mercer diziam que morriam de inveja da habilidade dele com as palavras e gostavam de citar como exemplo as rimas entre chalice, palace e aurora borealis (cálice, palácio e aurora boreal) da canção Midnight Sun:

Your lips were like a red and ruby chalice, warmer than the summer night
The clouds were like an alabaster palace rising to a snowy height.
Each star its own aurora borealis, suddenly you held me tight
I could see the Midnight Sun.

Mercer compôs a letra em 1954 ao ouvir no rádio do carro um tema composto pelo vibrafonista Lionel Hampton em 1947. Extremamente sofisticada em melodia e versos, Midnight Sun teve antológica interpretação de Tony Bennett, com arranjo e regência de Robert Farnon, em gravação de 1972.

Johnny Mercer ainda se dava ao luxo de ressuscitar canções que nunca tinham dado certo com outros letristas. Glow worm foi escrita para a opereta Lisístrata, de 1902, por Paul Lincke. Durante anos ganhou várias letras até que a de Johnny Mercer em meados dos anos 1940 eliminou a concorrência. O próprio Mercer se encarregou de popularizar Glow worm em disco em dezembro de 1947, acompanhado por coro e orquestra, com arranjo e regência de Alvino Rey.

Uma das parcerias mais bem-sucedidas da carreira de Johnny Mercer foi a que ele formou com Henry Mancini. Os dois estabeleceram um recorde ao levar o Oscar de melhor canção em dois anos seguidos: em 1961 por Moon river, de Bonequinha de luxo ou Breakfast at Tiffany's, e em 1962 por Days of wine and roses, do filme que tinha o mesmo título em inglês e se chamou Vício maldito no Brasil. Curiosamente, em sua autobiografia Henry Mancini conta que, ao lhe entregar a letra de Moon river, Mercer comentou que a canção não teria êxito comercial. Errou por muito: Moon river foi um dos maiores sucessos da dupla Mancini-Mercer e continua a ser gravada por diferentes gerações de intérpretes da canção americana.

O outro autor focalizado nesta postagem é Hoagy Carmichael. Ele nasceu em Bloomington, Indiana, em 22 de novembro de 1899. Ainda menino aprendeu a tocar piano com a mãe, que era pianista no cinema da cidade nos tempos do cinema mudo. Quando ele tinha 16 anos a família mudou-se para Indianápolis, e Hoagy teve aulas com um pianista negro de ragtime, Reggie Duval. Pouco tempo depois ele entrou para a Faculdade de Direito da Universidade local e se formou em 1926. Enquanto tocava com vários músicos de jazz que conhecia, exercia a profissão de advogado. Depois de ter duas composições, Riverboat shuffle e Washboard blues, publicadas e gravadas por alguns músicos de jazz, Carmichael decidiu se tornar ele também músico em tempo integral em 1927. Um de seus melhores amigos era o conhecido cornetista Bix Beiderbecke, que inspirou algumas composições de Carmichael. Em 1936 ele foi para Hollywood e nunca mais parou de trabalhar no cinema como compositor e ator.

Johnny Mercer e Hoagy Carmichael foram parceiros em várias canções para o teatro e para o cinema. Uma das mais conhecidas da dupla é a que ganhou o Oscar de 1951, In the cool, cool, cool, of the evening, composta para o filme de Frank Capra Here comes the groom ou Órfãos da tempestade, com Bing Crosby, que popularizou a canção também em disco. Fiel à sua própria afirmação de ser "100% imitador de Bing Crosby", Dean Martin gravou In the cool, cool, cool, of the evening em abril de 1951, com arranjo e regência de Dick Stabile. E a onipresente dupla Sinatra-Riddle também deixou seu registro da canção em 1964.

Mercer e Carmichael compuseram Skylark para um espetáculo da Broadway intitulado Young man with a horn em 1942, inspirado na vida do cornetista Bix Beiderbecke, amigo de Hoagy Carmichael. A peça acabou virando filme com o mesmo nome em 1950, com o próprio Carmichael fazendo um pequeno papel. No Brasil o filme se chamou Êxito fugaz. Outra característica comum: como Johnny Mercer, Hoagy Carmichael também era muito bom cantor. O registro de Skylark, com Hoagy Carmichael, voz e piano, arranjo e regência de Johnny Mandel, é de setembro de 1956.

Também como Johnny Mercer, Hoagy Carmichael não se limitou a um só parceiro. Um deles foi Frank Loesser, com quem ele compôs em 1938 a canção Small fry, para o filme Uma família gozada (Sing, you sinners), com Bing Crosby, Fred MacMurray e um jovem promissor chamado Donald O’Connor. O incomparável conjunto vocal The Hi-Lo’s deu a esse tema tratamento requintado em 1959, com arranjo para vozes do líder Gene Puerling e instrumental de Marty Paich, à frente de seu fabuloso Decteto, com músicos como Jack Sheldon no trumpete, Bill Perkins, Herb Geller e Bud Shank nas palhetas.

E, pra (não) variar, mais um traço em comum com Johnny Mercer: Hoagy Carmichael também compunha sozinho. O melhor exemplo disso é a belíssima I get along without you very well, de 1938. Numa de suas últimas sessões em estúdio Billie Holiday deixou pungente interpretação desse tema, com arranjo e regência de Ray Ellis, gravação de 20 de fevereiro de 1958 para o álbum Lady in satin, que ela fez para a Columbia. Carly Simon seguiu os passos de Billie e também fez extraordinário registro de I get along without you very well no igualmente belo álbum Torch, de 1981.

Algumas das criações mais conhecidas de Hoagy Carmichael demoraram para agradar o público. O exemplo mais incrível é o da hoje famosíssima Georgia on my mind, composta em 1930 com letra de Stuart Gorrell. Esquecida por trinta anos, tornou-se um êxito mundial indestrutível na voz de Ray Charles. O motorista de Ray costumava cantarolar a canção e sugeriu ao patrão que a gravasse, o que aconteceu em 25 de março de 1960, com arranjo e regência de Ralph Burns.

Uma canção de 1937, The nearness of you, feita em parceria com o letrista Ned Washington para o filme A princesa e o galã ou Romance in the dark, tornou-se um dos maiores sucessos de Carmichael e conta com número bem expressivo de gravações, entre elas as de Sarah Vaughn, Keely Smith e Frank Sinatra.

Outra particularidade da carreira de Hoagy Carmichael está ligada à melodia que ele compôs em 1927, sugerida pelo estilo do amigo Bix Beiderbecke, com o nome de Barnyard shuffle. Ela ganhou letra de Mitchell Parish e o nome Stardust em 1929 e, em versão cantada ou instrumental, tornou-se a música mais gravada do século XX, segundo a Enciclopédia Penguin de Música Popular, publicada na Inglaterra. Curiosamente, durante quase 30 anos todo mundo praticamente se esqueceu da maravilhosa introdução feita por Carmichael para esta canção. Em gravação de 19 de dezembro de 1956, Nat King Cole e o maestro-arranjador Gordon Jenkins restabeleceram a verdadeira obra-prima que é essa introdução, que seria gravada até sozinha por Frank Sinatra e o maestro-arranjador Don Costa em 1961.

Johnny Mercer e Hoagy Carmichael estão entre os grandes nomes da indústria americana do entretenimento do século XX. Juntos ou com outros parceiros, deixaram um número enorme de canções importantíssimas – um legado de grande beleza e alta qualidade artística.

Blog no ar




Olá, amigas e amigos, cambada de pensantes ou não-pensantes!


Atendendo a alguns pedidos e, como diria o saudoso mestre Fausto Canova, em face de uma série de ameaças, vou dar as caras por aqui.


As primeiras postagens vão ser mais na linha exploratória. De acordo com as reações de quem as comentar e com o que eu mesmo achar mais adequado, elas serão modificadas. E os eventuais erros apontados serão devidamente corrigidos.


De cara, um aviso: vivo de escrever há mais de 40 anos, já passei por várias reformas ortográficas, semânticas, léxicas, pedagógicas, verborrágicas, prolegomênicas, propedêuticas, oligofrênicas (como diria o saudoso Dimas Costa, meu primeiro grande mestre na Abril Cultural) e outras. Acho a atual reforma uma grande besteira, porque, até que alguém me prove o contrário, vai ajudar a criar textos ainda mais confusos do que os que vemos todos os dias em jornais, revistas e na própria Internet. Portanto, aos "corretores empedernidos" de plantão, aviso que vou continuar a escrever de acordo com regras mais ou menos bem definidas que tenho usado nos últimos tempos, sob a orientação do já citado mestre Dimas e também de outros dois grandes mestres, Eduardo Martins e Pasquale Cipro Neto, que conhecem o idioma muito melhor do que eu.

Advirto, outrossim (advérbio que o mestre Eduardo Martins detestava mas a gente "plantava" em textos no Estadão, a fim de desfrutar divertidos e infalíveis acessos de fúria dele) que, se algo parecer errado, será por culpa única e exclusiva deste locutor que vos fala, sem nenhuma participação ou conivência desses egrégios senhores. Os acertos, estes sim, se deverão a diretrizes por eles estabelecidas e adotadas não só por mim mas igualmente por muita gente de respeito no ofício.

Este blog abordará vários temas, com destaque para as artes. Mas haverá espaço para outros assuntos, com a preocupação de responder, na medida do possível, as contribuições de quem quiser se manifestar sobre o que aqui for escrito.

Tentativamente, haverá uma nova postagem a cada semana, em princípio às sextas-feiras.

Espero que quem arriscar uma olhada aqui proponha novas idéias, estimule o debate e, se possível, se entretenha.